Baleia Baleia Baleia + Super Bronca | Não se passa nada às Segundas
Com o mês de agosto veio mais uma matiné da Saliva Diva na Socorro, esse espaço que é ao mesmo tempo loja de discos, livraria e sala de concertos, numa espécie de paraíso intimista para qualquer melómano respeitável. Nesta ocasião, a oferta ,sempre às segundas numa tentativa feliz de contrariar o tédio/ depressão do início da semana, apresentou-se em formato power duo com duas propostas altamente aliciantes: as Super Bronca e, a fechar, as humildes “divas” (porque a Saliva é a sua editora, nada mais há para ver aqui) Baleia Baleia Baleia.
As primeiras são duas jovens de sublime alma punk, ainda inexperientes mas com a atitude certa de quem sobe ao palco para partir tudo com veemência e sem pudor. Imaginem a sujidade grunge dos Nirvana da era “Bleach” (aliás, mandaram mesmo uma potente cover do clássico “School” ) com o “ rasgo” noise cheio de garra, dissonância extrema e inconformismo jovial dos Sonic Youth - a própria postura de Teresa Bessa, mais conhecida como SHE NOISE, tem algo de Kim Gordon - e ficam com um bom resumo da força revigorante que estas miúdas debitam. Intensidade berrada no feminino e a “ cuspir” no patriarcado, com uma identidade queer a tornar tudo ainda mais excitante e reivindicativo… É o espírito riot grrrl num impetuoso eco de contestação moderna, sem remorsos.
Com uma cover de PJ Harvey pelo meio (para “To Bring You My Love”), as Super Bronca foram espetacularmente arrebatadoras, aquela paixão incontida a deixar-nos rendidos na fila da frente. Isto sim, é punk rock, carago- uma valente bofetada na cara de conservadores obtusos. Kurt Cobain estaria orgulhoso, e o nosso orgulho é imensurável. Parabéns, girls - até quase nos vieram as lágrimas, sois grandes.
E se só por elas a matiné já teria valido a pena , a atuação dos Baleia confirmou que teria sido um erro ficar em casa. O concerto começou bem, perante uma sala com 150 pessoas lá dentro, e com o duo a optar por um registo interativo no qual o público podia escolher as músicas de Baleia que queria ouvir - o que foi bem giro , na verdade , até Manuel Molarinho, o super afável frontman que é também baixista do grupo, o disse. Mas depois ... Depois algo aconteceu. De repente , o que estava a ser honestamente um bom gig, transformou-se em algo maior e grandioso, e deu lugar a uma das mais alucinantes e fabulosas prestações de rock- e não só, a sua grandeza revelou-se transversal a géneros - que testemunhamos este ano. Subitamente estávamos a dar tudo - havia saltos , havia mosh, havia suor a escorrer por uma série de rostos que espelhavam euforia - e no meio do suor respirava-se algo belo, algo que não era palpável mas que se mostrava bem visível: um sentimento de liberdade , de refúgio emocional no conforto de um rock festivo a roçar o mirabolante. Porque a beleza da música dos Baleia é precisamente essa: existe em disco para poder florescer em palco, vive dessa troca de energia espontânea que lhe dá significado. E se antes já tinham assinado excelentes prestações - no Maus Hábitos ou nos estúdios do Quarto Escuro, para dar alguns exemplos - , aqui protagonizaram o que merece ser descrito como uma rock 'n' roll summer party: festarola épica , tão suada quanto apotéotica , numa entrega surrealmente eufórica de um rock freneticamente orelhudo. Mais do que um simples concerto, isto foi uma performance estupenda que ficará imortalizada na história da Socorro por quem teve a honra de a sentir no momento.
Com um Manuel Molarinho ( sempre bem acompanhado, já agora, pela “máquina” coesa que é o baterista Ricardo “Riscos” Cabral) visivelmente entusiasmado , a pôr-se em cima das colunas da frente ou a dirigir-se para o meio do público, ficou claro que basta um coração maior que o mundo e uma paixão autêntica - isso e, claro, malhas pujantes, como aquelas que os Baleia oferecem na irresistível jam infindável de “Interdependência” ou em “ Venham as Máquinas”- para se criarem memórias eternas. Numa altura em que as pessoas preocupam-se, nas redes sociais, com a presença de grandes headliners em festivais mediáticos, tivemos uma banda local a ser responsável por um dos melhores concertos do ano. Estranho? Nem por isso. De coração cheio, vivemos o underground.
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sábado, 26 agosto 2023